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Inteligência artificial é a vitória dos terraplanistas

Nosso cérebro, a despeito de sua incrível capacidade, não sabe distinguir o real do imaginário, informação amplamente conhecida nos círculos de manipuladores da opinião alheia. Explico.

Realidade e imaginação são conceitos criados pelo homem e que, portanto, não pertencem ao arcabouço (palavra da moda) de elementos detectáveis pelo cérebro humano. Nosso limite de percepção são nossos sentidos. Eles são os responsáveis por captar, como antenas, o que está a nossa volta e informar ao cérebro, isolado que está em sua bem protegida morada óssea. O que eles disserem, está dito.

Não vemos os sinais de rádio, mas a razão nos força a acreditar na sua existência. Não vemos o wi-fi, mas, racionalmente, sabemos que existe. Entretanto, nossa imaginação é fértil e acabamos por produzir uma brecha filosófica, digamos assim, para que possamos acreditar em qualquer coisa que nos seja conveniente, mesmo que não tenha sido captado em nenhum de seus sentidos ou conte com comprovação científica, o que, convenhamos, pra muita gente não faz nenhuma diferença. Por exemplo, quem acredita em algum deus, não o vê, não tem provas concretas, mas crê inabalavelmente na sua existência baseado única e exclusivamente na fé. E, contraditoriamente, nega todas as centenas de outros deuses concorrentes.

Essa brecha só é possível por causa do pensamento racional, o grande inventor de realidades. Nosso cérebro, de certa forma ingênuo, têm confiança absoluta nos sentidos, e, consequentemente se torna refém deles. Mas tem alguém que pode mudar mesmo que parcialmente esse cenário: o consciente, nosso diferencial com relação aos outros animais, resultado, entre outras coisas, de um crescimento expressivo de nosso lobo frontal, diretamente associado a funções cognitivas superiores, como tomar decisões, resolução de problemas e planejamento. Nós, por causa dele, temos condição de questionar o que estamos vendo, cheirando, ouvindo, etc. Podemos raciocinar, procurar lógica, tentar entender fenômenos contraditórios, mas também acreditar em histórias que nós mesmos inventamos. Basicamente, confrontando os sentidos e tomando decisões a despeito do que estamos sentindo e/ou percebendo.

Repare nas histórias as quais somos apresentados todos os dias, em filmes, novelas, séries, teatro e etc. Mesmo tendo consciência absoluta de que aquilo é simulado, que as pessoas estão fingindo ser outras pessoas, dizendo coisas que foram inventadas por outras pessoas, que existe um batalhão de gente por trás das câmeras, queremos do fundo do coração uma punição exemplar para o vilão, torcemos para que o herói atinja seu objetivo, nos alegramos ao ver um casal apaixonado ficando finalmente juntos, temos medo de monstros, demônios e serial killers vestindo máscaras, nos frustramos diante de uma injustiça flagrante e choramos com a morte de um personagem querido, mesmo que você já tenha visto aquele ator morrendo dezenas de vezes em outras histórias. Vilões de novelas globais não podem sair na rua porque certamente serão hostilizados na fila do supermercado. Tanto quanto a verdade, a mentira também mexe com nossas emoções. Mesmo a mentira escancarada.

Ter certeza é uma ilusão

O fenômeno das bolhas sociais se explica porque o cérebro possui um sistema de defesa de nossos padrões. Qualquer informação que confirme nossas crenças carregará muito mais credibilidade do que aquela que as nega. Uma dose de hormônios do nosso sistema de recompensa, entre eles a dopamina, é despejada cada vez que o que acreditamos recebe mais um reforço. Verdadeiro ou falso? Tanto faz. Não é maldade, burrice ou má-intenção. É como a coisa funciona. Por isso, a premente necessidade de usar a razão para analisar as informações que recebemos. Quem deu, quais são as provas, os argumentos, faz sentido, será que é verdade mesmo ou querem me enganar? Só porque uma informação me é prazerosa, não quer dizer que seja verdadeira. O autoengano é o maior inimigo da razão.

Tenho um compromisso comigo mesmo: não quero estar certo. Quero estar o mais certo possível. Isso pressupõe questionar tudo o que acredito em busca da versão que mais me pareça lógica. Por isso, sempre desconfiei de quem tem certeza. Mas não vou mentir: descobrir que não temos razão dói. Dói muito. Aquele processo que mencionei relativo ao nosso sistema de recompensas, também, por óbvio, trabalha no sentido inverso: um desconforto imenso nos toma de assalto quando informações negam nossas crenças. Então, ao invés de questionar, a maioria prefere abraçar a mentira, parceira de primeira hora da zona de conforto e nossa grande amiga do peito.

As ferramentas de inteligência artificial que pululam pela internet são capazes de criar as realidades paralelas onde tanta gente já vive atualmente, alimentando a fogueira de ilusões flamejantes. Muito em breve, as conspirações ganharão imagens, sons e cheiros, transformando delírios e devaneios em verdades praticamente celestiais, vinda de Deus. O SEU deus, claro. Como já constatamos, os outros 358 são embustes.

A soma de todos os medos

Confesso que estou angustiado ao ser diariamente confrontado com mais uma ferramenta (ou várias) que inventa realidades. Avatares que parecem pessoas de verdade falando aquilo que escrevemos (o chamado text-to-voice), imagens totalmente inventadas beirando à perfeição, nossa voz (ou de outros) emuladas com precisão para posterior utilização text-to-voice, criadoras de vídeos do zero, de propaganda, de histórias, de artigos e muitas outras que têm enorme impacto sobre nossa imaginação, munindo nossos sentidos com percepções cada vez mais reais, e, por isso mesmo, estarrecedoras.

A internet criou universos paralelos. A inteligência artificial os está oficializando. A partir de agora não existirá mais fantasia. Só realidade. E a realidade é que ao invés de entrarmos no multiverso, será o multiverso que entrará na gente. Além disso, vão acabar com o trabalho de muita, mas muita gente mesmo, assunto que vou comentar em outra oportunidade.

Pessoas que enxergaram Jesus nas torradas, poderão confirmar o milagre, mostrando-o pregando o evangelho besuntado em manteiga. Adivinhos usarão bolas de cristal digitais mostrando vídeos com o futuro de seus clientes apresentado de forma cristalina, em 4k. Generais terão imagens nítidas e incontestáveis das armas de destruição em massa. No futebol, jamais um impedimento poderá ser marcado novamente, pois cada clube terá seu próprio VAR. Políticos postarão vídeos provando que eles não prometeram aquilo que prometeram, dizendo que, na verdade, foi o primeiro vídeo o produzido com inteligência artificial. Infiéis conjugais enviarão fotos aos parceiros mostrando como estão se divertindo no Seminário de Contabilidade. Sex tapes de famosos até perderão sua atratividade já que serão postados aos milhares. Videochamadas não serão confiáveis: não, o Messi não está te convidando para uma pelada, nem a Gisele Bundchen vai estar na torcida pra te apoiar. Mas garanto que esta minha afirmação não surtirá efeito. A lógica continuará a mesma: se estou vendo e ouvindo, só pode ser verdade.

Alongando as pernas da mentira

Verdade e mentira, que sempre foram tão fluidas, terão finalmente fortalecidas suas posições. De ataque e de defesa. A polarização atingirá um nível de cristalização, que a sociedade, antes num movimento de união, a chamada aldeia global, caminhará na direção oposta, ou seja, na contramão do processo civilizatório. Cada vez mais fragmentada. O que antigamente eram culturas locais serão substituídas por grupos de whatsapp alimentados por desvarios muito bem estruturados e comprovados. O choque de culturas será literal e violento. Não haverá mais discussão. Não haverá mais reflexão. Não que haja muito hoje, mas as janelas estarão cada vez mais fechadas, impedindo a entrada da luz por meio de debates democráticos e saudáveis.

Talvez voltemos ao modelo da idade média, com feudos autossuficientes. Cada um de nós escolhendo nosso castelo e vivendo felizes naquele lugar onde tudo é do jeito que queremos. Os outros deverão ser exterminados, ou, no mínimo, calados, ameaça que são à nossa felicidade. “O que eles acreditam é um absurdo. São idiotas, manipulados ou oportunistas”.

Cada bolha terá seu próprio sistema de inteligência artificial, que estará sempre confirmando a realidade óbvia e incontestável. É a vitória dos negacionistas. A ironia é que, graças à ciência em sua mais sofisticada expressão, eles encontrarão todos os argumentos necessários para reforçar seu credo na terra plana, nos malefícios da vacina contra covid e na conspiração judaico-comunista-globalista que quer dominar o mundo. Haja inteligência artificial pra tanta ignorância.

Além da vitória da ignorância, viveremos o fim das utopias, já que elas serão materializadas e, portanto, perderão sua condição de inalcançáveis, não tendo mais sentido a existência da palavra e muito menos do conceito que representa.

O trágico fim

Falando em utopia, num cenário mais distópico ainda, as pessoas passarão a viver em seu próprio mundo paralelo, solitárias, isoladas umas das outras, em bolhas individuais e personalizadas, gozando plenamente a ex-utopia da vida perfeita, até que começarão a não sentir mais prazer, porque, como toda droga, a dopamina e suas correlatas também deixam de funcionar se utilizadas ininterruptamente e serão necessárias cada vez doses maiores, maiores e maiores. E a humanidade perecerá por overdose de dopamina.

Uma segunda ironia é que, de fato, as máquinas exterminarão o ser humano. Mas não da maneira que imaginamos, nos eliminando com suas próprias mãos mecatrônicas em função de nossa óbvia inutilidade ou imperfeições. Nem precisarão ter esse trabalho todo. Elas foram criadas para fazer nosso trabalho por nós. Mas, nesse caso, nós é que faremos o trabalho delas por elas. Ao invés de sujarem seus chips de sangue, ficarão apenas assistindo nossa auto-aniquilação de camarote, se transformando nas únicas e definitivas soberanas da terra triangular.

Henrique Szklo
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