14 fev Para criar, é preciso trair a si mesmo
Se trair o próximo é inaceitável, trair a si mesmo é uma afronta a qualquer resquício de dignidade que um ser humano possa carregar. Quer dizer: nem sempre. Existe, de fato, uma ocasião específica em que, ao contrário, temos a obrigação e o dever de trair a nós mesmos: o momento da criação.
Todo processo criativo exige traição aos nossos princípios, nossas crenças e padrões. Não há como criar se não subvertermos nossa visão de mundo de alguma forma. O pensamento criativo, por motivos óbvios, não se dá requentando ideias por nós criadas ou conhecidas. Não podemos coadunar com nossa forma cotidiana de pensar. Edward DeBono, grande estudioso da criatividade, não a toa, cunhou a expressão “Pensamento Lateral”, que significa sair de seu modo de interpretar o mundo e buscar a construção de outra perspectiva, totalmente alheia ao nosso repertório pessoal. No meu léxico particular chamo de Subversão. É mudar a posição da câmera mental, perseguindo outra forma de ver o que já estamos familiarizados. Olhar para o que conhecemos e enxergar o que nunca vimos.
Todas as crenças que acumulamos ao longo da vida nos fazem a pessoa que somos. Ao confrontá-las e até mesmo negá-las (ação obrigatória na alta criatividade), estamos perpetrando uma traição ao nosso modo de vida, ao que acreditamos lá no fundo, às informações que sustentam emocionalmente nossa existência. É por isso que as ideias novas e diferentes nos causam tamanho desconforto e a sensação de que estão erradas, justamente em função da dor que causam.
Duas coisas que todo criativo precisa
Primeira, saber que é assim mesmo. Que pensamentos verdadeiramente originais geram desconforto, insegurança e a sensação de estarmos equivocados ao formulá-los. Você pode ser um criativo bissexto ou veterano: não existe alvará de segurança no processo de criação. Não existe certeza no processo criativo. Só esperança.
Segunda coisa, diante desta consciência, utilizarmos técnicas que nos permitam enfrentar o desafio de criar atenuando o sofrimento e “enganando” nosso cérebro. Mais uma vez, traindo. Subrepticiamente.
Nosso personal Judas
Porém, não devemos nos confundir neste processo. O fato de permitir que pensamentos abjetos percorram minhas sinapses não faz de mim um pária. Não precisamos, nem devemos, concordar com tudo o que pensamos. Nem todo pensamento é a expressão de nossa identidade, sendo muitos deles involuntários. A solução prática que encontrei para lidar com este desafio foi criar uma entidade fictícia em meu cérebro que seja responsável por pensar qualquer coisa sem julgamento, sem preocupações com o que é certo e o que é errado. Uma entidade amoral. Eu chamo a minha de Amaral.
Meu Amaral é aquele que me liberta da culpa e do sofrimento de pensar coisas que vão contra tudo o que acredito. Que me traia sem culpa ou justificativa nem me peça perdão. O Amaral é um traidor vocacional. Ele existe para trair e por isso mesmo eu devo deixar que ele cuide da subversão, do pecado e da infâmia de pensar livremente sem culpa e sem preocupações mundanas. Sou só um observador distante, mantendo minha autoimagem imaculada e minha dignidade intacta. Jamais irei para o inferno. Esse destino é do Amaral. Problema dele.
Mas não devemos hostiliza-lo. Ao contrário. É saudável que estimulemos seu comportamento desregrado e anárquico, sem esquecer de agradecê-lo por nos poupar da aflição autoinflingida e por colaborar tão decisivamente com nosso desempenho criativo. Quanto mais forte e destemido for seu Amaral, maior será seu potencial de gerar ideias verdadeiramente criativas. Minha sugestão? Deixe o homem trabalhar.
Só para manter a coerência e não trair a confiança do leitor, lanço mão de uma lógica despudoradamente extravagante: já que criar é um ato digno de nosso desprezo, são os desprezíveis os maiores responsáveis pela evolução da humanidade, os grandes transformadores do mundo. Confie em mim.