17 ago A arte era bem melhor quando ninguém sabia nada
Alguém aí pode me dizer em que escola de teatro Shakespeare se formou? Qual o nome do método de aprendizado utilizado por Picasso? Quem ensinou Machado de Assis a escrever? Onde Elvis aprendeu a cantar?
A arte de outrora, com suas obras-primas atemporais, nasceu em períodos onde o desconhecimento era abundante e a coragem criativa reinava. Os grandes artistas de outros tempos não tinham o luxo de “especialistas” ou fórmulas de sucesso disponíveis para guiá-los. Eram desbravadores em territórios desconhecidos, criando o novo com uma mistura de coragem e ignorância. Hoje, no entanto, vivemos em uma era onde o entretenimento é 100% business e seus controladores sabem tudo: o que é bom e o que é ruim. Eles impõem regras, métodos e fórmulas, e tudo o que estiver fora deste escopo, não vai ter espaço nem ar para respirar. E é essa estúpida lógica que sufoca a criatividade. No cinema, no teatro, na literatura, na música. Não estou dizendo que não é preciso estudar, claro que não. A questão é outra. O que e como estudar.
Não é nem preciso voltar muito no tempo. Pense no Brasil de décadas passadas, quando gigantes da música como Cartola, Tom, Chico, Caetano e Elis definiram o que conhecemos como samba e MPB. Eles não tinham escolas de música que lhes ensinassem como fazer sucesso e ganhar dinheiro (que parece ser a principal força motriz do artista atual). Eram autodidatas, moldados pela vida, pelas ruas e pela experiência pessoal. O resultado? Músicas que atravessaram gerações e continuam a ser reverenciadas. Em contraste, hoje nos deparamos com o domínio do sertanejo e do funk, que, do ponto de vista musical e lírico, não são musicais e muito menos líricos. Carecem escandalosamente da profundidade e da qualidade criativa que caracterizaram os ícones do passado. Na verdade, são uma ofensa pessoal ao seu legado.
O cenário internacional não é diferente. Ícones do pop, rock, jazz e R&B como os Beatles, Miles Davis, Aretha Franklin e Michael Jackson não surgiram de fórmulas pré-estabelecidas. Eles aprenderam na raça, muitas vezes sozinhos, observando os ídolos, experimentando e criando algo genuinamente novo e muito próprio. Hoje, temos artistas como Beyoncé, Taylor Swift e Justin Bieber, que, embora populares e relativamente talentosos, são produtos de um sistema que valoriza a máquina de ganhar dinheiro usando fórmulas previsíveis em detrimento da inovação genuína. Não sou ingênuo a ponto de acreditar que o dinheiro em algum momento não tenha sido uma especial motivação para o trabalho artístico (tirando Van Gogh et caterva). Porém, me parece que a balança já foi mais equilibrada. Grandes artistas tinham sim vontade de ganhar dinheiro, mas não como objetivo principal, e sim como resultado de sua arte.
Deixando o dinheiro de lado (se é que é possível), o cineasta Orson Welles, por exemplo, cujo primeiro filme Cidadão Kane é frequentemente citado como o melhor da história do cinema, exemplifica a ideia da força do autodidatismo na arte. Em uma entrevista, Welles afirmou que não foi corajoso ao criá-lo, mas ignorante. Ele não sabia o que era ou não era possível no cinema, então foi simplesmente seguindo o que seu instinto dizia ser interessante. Nesse processo, não apenas criou uma nova linguagem cinematográfica, mas também inovou com equipamentos ópticos e câmeras, moldando de certa forma o futuro do cinema.
A lista de grandes artistas autodidatas do passado é tão extensa que não me atrevo a continuar. Você deve estar pensando agora mesmo em vários outros exemplos, pois, de fato, são numerosos. A conclusão que se impõe, porém, é paradoxal: em tese, quanto mais se conhece um assunto, maior é a capacidade de criar novos caminhos. No entanto, o conhecimento profundo também pode eliminar as incertezas, o instinto, a intuição, as experiências e a busca por caminhos totalmente diferentes. Quanto mais sabemos, mais nos sentimos tentados a seguir o que já foi provado como “correto” e “bem-sucedido” em vez de nos aventurarmos no desconhecido. No caso específico da criatividade, a ignorância às vezes pode ser mesmo uma bênção.
A palavra criatividade, aliás, é hoje constantemente mal empregada. Artistas atuais, pelo menos aqueles que frequentam as mídias, são confortavelmente criativos, ou seja, não são muito fãs do desafio intenso da quebra de padrões. Do risco de dar errado. São muito competentes em seu trabalho, porém não quebram nada. Criativos? Mais ou menos. Eu particularmente não admiro as pessoas chamadas de criativas hoje. A minha admiração está endereçada a outra categoria de criativos. A dos gênios. Estes sim merecem todo o meu respeito e reverência. Desculpe a minha ignorância, mas não conheço nenhum nascido no século XXI.
Toda esta lógica se aplica também à publicidade, seja analógica, seja digital. Especialistas em anunciar nas redes sociais ficam milionários ensinando pessoas que querem ficar milionárias utilizando fórmulas de sucesso. E em todas elas, a criatividade é olimpicamente ignorada. Claro, as palavras fórmula e criatividade não ficam nada confortáveis em uma mesma frase.
A propósito, eu mesmo sou um autodidata. Não conte pra ninguém porque hoje isso parece ser uma doença similar à lepra. Primeiro, na minha profissão de publicitário. Agradeço até hoje à FAAP que não me ensinou absolutamente nada sobre criatividade, Graças a isso tive de aprender no dia-a-dia, trabalhando ao lado de gigantes do mercado e criando o meu próprio roteiro profissional. Depois que deixei a propaganda e comecei a estudar criatividade e comportamento, me permiti buscar sozinho respostas às minhas perguntas. Só a partir do momento em que senti que havia alcançado o teto da minha capacidade de reflexão e observação, passei a estudar os cientistas consagrados nas áreas relacionadas ao meu trabalho. E me deu imenso prazer em perceber que praticamente tudo o que eu havia concluído sozinho estava de pleno acordo com o que a ciência acredita ainda hoje. E, graças a esses outros gigantes, atravessei aquele teto. Mesmo assim, fico feliz em saber que ainda não sei nada e que, portanto, serei sempre surpreendido por novos conhecimentos, insights e conexões. Obrigado, lepra.
Não sei se deixei bem claro meu ponto de vista. Relendo aqui, acho que não. Então deixa eu tentar explicar de uma forma mais direta. É preciso sim estudar. Sempre. A vida inteira. Mas acredito que ter uma formação informal, baseada principalmente no interesse pela matéria e na experiência prática ao vivê-la, vai criar um terreno extremamente fértil para quando o conhecimento formal lhe for apresentado. Não há que se temer os vícios adquiridos em função da ausência de método. Às vezes são os próprios vícios que vão dar o toque criativo ao trabalho. Então, resumindo, se for possível, primeiro tente aprender sozinho e só depois busque o aprendizado formal.
E o paradoxo habita minha cabeça diariamente. Quero saber muito e não quero saber nada ao mesmo tempo. E equilibrar estes dois pratos da mesma balança é o que me mantém vivo, curioso, tranquilo e desesperado. Pode ser desconfortável, mas sem desafio não existe criatividade. E sem criatividade, eu não existo. E mais: quem disse que ser criativo é viver em um mar de rosas? É no desconforto do desconhecido e no campo da incerteza que a verdadeira criatividade floresce, livre das amarras do saber absoluto e aberta às infinitas possibilidades do que ainda não foi feito. A dúvida é a melhor e a pior amiga da criatividade. Tenho certeza disso. A boa notícia é que se seu objetivo principal é ser criativo apenas como forma de ganhar dinheiro, você não poderia ter nascido numa época melhor. Consulte um especialista. Ele vai confirmar.