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A armadilha do conforto: como a felicidade pode sabotar sua criatividade

O maior estímulo à criatividade é, sem dúvida, o desejo ou a necessidade de se alterar o status quo. A busca incessante por mudanças e novos caminhos é o que frequentemente leva à criação de ideias revolucionárias. Contudo, a felicidade, esse estado de satisfação e conforto que todos almejam, pode se tornar um obstáculo para a criatividade. Ao propagar novas ideias, além de sermos julgados (pelos outros e por nós mesmos), existe a possibilidade de a ideia falhar e termos de lidar com o fracasso e a frustração. Os budistas já estão carecas de saber que a frustração existe precisamente na razão direta da existência do desejo. E este é o maior dilema relacionado à criatividade. Por definição, ela desenvolve uma relação simbiótica com o desejo e, consequentemente, com a frustração. Mas que diabos, se estou me sentindo bem, pra que arriscar? Pra que flertar com um estado emocional que pode acabar com meu bem-estar? Em nome do quê? Provavelmente por causa da marca registrada do ser humano: o inconformismo.

Quando falo sobre ser feliz, estou ciente de que a felicidade é um estado emocional que a maioria das pessoas raramente experimenta de forma plena. E quando isso ocorre, são momentos pontuais de suas vidas. Por isso não dá pra dizer que somos felizes. Quando muito, estamos felizes, o que, no final das contas, significa apenas vivenciar um momento onde não se enfrentam grandes desafios, onde as pressões externas e internas são minimizadas, ou quando se está desfrutando de conquistas pessoais ou profissionais. Mas, para o bem ou para o mal, essa sensação tende a ser efêmera. Como dizia Chico Xavier, “isso também passará”.

Zona de Conforto, a inimiga silenciosa da criatividade

Estar feliz é, por definição, estar na zona de conforto. Porém, todo o processo criativo está intrinsecamente ligado ao desafio, ao questionamento e à fuga desta mesma zona de conforto. Embora uma pessoa ancorada neste porto seguro possa ter boas ideias, essas raramente alcançarão o nível daquelas capazes de provocar grandes suspiros na humanidade. O cérebro, mesmo o das pessoas consideradas mais criativas, tende a preservar o estado de conforto, limitando, assim, a profundidade das ideias que possam surgir. A chamada felicidade, portanto, pode atuar como um bloqueio criativo, impedindo que ideias verdadeiramente transformadoras emerjam. Mas não por vontade do indivíduo, mas por um ardil imperceptível de nosso inconsciente.

O sofrimento como catalisador de grandes ideias

A ciência também sugere que a criatividade pode estar associada a distúrbios mentais. Estudos como o de Nancy Coover Andreasen sobre a ligação entre criatividade e transtornos de humor em artistas, bem como a pesquisa de Kay Redfield Jamison sobre o papel da bipolaridade na vida de figuras criativas, oferecem uma base empírica para essa observação. Uma legião de grandes artistas ao longo da história, como Van Gogh, Virginia Woolf e Kurt Cobain, lutaram com condições como depressão, bipolaridade e esquizofrenia, o que reforça a complexa relação entre sofrimento e produção criativa. Arthur Bispo Rosário, artista plástico brasileiro, prestigiado internacionalmente, passou por várias instituições psiquiátricas por quase 50 anos em função de sua esquizofrenia. Steve Jobs foi outro maluco obsessivo que mudou para sempre a história da humanidade. Bastou ele morrer para que um cara sem grandes traumas tomasse seu lugar e tirasse a Apple da condição de líder absoluta da revolução digital e grande transformadora da sociedade.

Essa correlação não é difícil de entender: formular pensamentos originais pode causar um imenso desconforto, já que desafia o sistema de crenças que nosso inconsciente tenta preservar para garantir nossa sobrevivência emocional. Para aqueles que já carregam o peso do desconforto em sua vida diária, a possibilidade de novos pensamentos pode, paradoxalmente, ser estimulante. Esses indivíduos buscam escapar de seu estado atual, e ideias originais podem oferecer uma rota de fuga. O desconforto que geralmente acompanha um novo pensamento torna-se quase imperceptível em comparação com o sofrimento contínuo com o qual já convivem. Colocar seus sentimentos em forma de arte ou invenção surge como uma forma de exorcizar seus demônios internos. Como diz um amigo meu, Paulo Garfunkel, o Magrão, a maldição move, a benção relaxa.

O medo da crítica, que muitas vezes impede as pessoas de compartilhar suas ideias, é atenuado por essa mesma lógica. Para quem já está acostumado a se sentir excluído ou incompreendido, a crítica dos outros se torna um fator secundário. É claro que ninguém gosta de ser criticado, mas aqueles que já estão acostumados com a sensação de desconforto ou exclusão podem ser mais resilientes nesse contexto.

Todo animal é um solucionador de problemas

A criatividade é uma ferramenta biológica de sobrevivência, e, portanto, de adaptação. Na cabeça de qualquer animal, diante de uma informação nova, acende-se o sinal de alerta em busca de uma reação imediata. Ele procura em frações de segundos por referências mentais relacionadas àquela situação específica para utilizá-las na tomada de decisão. No entanto, quando não encontra uma experiência prévia relacionada àquele contexto, ele parte para a improvisação, ou seja, reage de uma maneira original a um estímulo original. Essa capacidade de improvisar, fundamental para a sobrevivência, evoluiu exponencialmente junto com nosso cérebro e se transformou no que chamamos hoje de Criatividade. Em essência, a criatividade nada mais é do que a evolução da capacidade que todo animal tem de improvisar diante de potenciais ameaças. Resumindo, os animais só “criam” quando se sentem ameaçados. O ser humano, por sua vez, evoluiu a ponto de criar quando quer, mesmo quando não corre nenhum tipo de risco à sua integridade.

A batalha da criatividade nas guerras

Contudo, a ameaça à integridade continua sendo a grande impulsionadora do pensamento criativo. Não é à toa que as maiores produtoras e aceleradoras de criatividade na história da humanidade são as guerras. Grandes invenções, que melhoraram drasticamente a qualidade de vida do ser humano, vieram de esforços de guerra, de investimentos militares, mesmo em tempos de paz, como, por exemplo, a internet, o GPS, o forno de micro-ondas, o absorvente feminino, os aviões a jato, a penicilina e mais uma infinidade de grandes ideias. Recentemente, vivemos outros exemplo com a pandemia de Covid, quando avanços tecnológicos e até comportamentais ganharam velocidade. Ou seja, estresse, crise, pressão, perigo, elementos diametralmente opostos à felicidade, foram gatilhos para uma boa dose de conforto para o ser humano moderno. Somos mais felizes hoje do que seríamos sem as guerras? Não sei dizer.

Este raciocínio não pretende ser restritivo, mas sim uma provocação para reflexão. A criatividade, como habilidade humana essencial, pode florescer tanto no desconforto quanto no bem-estar. Estudos sugerem que emoções positivas também podem aumentar a capacidade de pensar de maneira ampla e flexível, facilitando a geração de novas ideias. A criatividade floresce não apenas na adversidade, mas também em ambientes onde o indivíduo se sente seguro e encorajado a explorar novas possibilidades sem medo de julgamento. Mas não se engane. As mentes perturbadas continuarão a ter um melhor desempenho mesmo nestes ambientes alegremente propícios ao pensamento criativo. Aqueles com felicidade crônica, mesmo quando no Paraíso, não serão capazes de suplantar seu apreço pela zona de conforto, mesmo que inconscientemente. É claro que há exceções, como sempre. Até hoje não consegui decifrar o Paul McCartney. Apesar de ter passado pelo drama de perder a mãe muito cedo, ele sempre me pareceu um cara mais ou menos equilibrado, bem diferente de seu atormentado parceiro John. Paul até hoje, com oitenta e tantos anos, ainda sente prazer em tocar e cantar para quem quiser ouvir: desde estádios lotados até a formatura de sua neta.

Alegre-se. Você também pode ser infeliz de vez em quando

A criatividade é a mais importante habilidade do ser humano já que potencializa todas as outras. Mas o pensamento sobre o potencial prejuízo que a felicidade pode trazer ao processo criativo está, de fato, mais relacionado ao mundo artístico, onde os indivíduos são, naturalmente, mais livres para propor o rompimento de estruturas do que os criativos profissionais, que precisam considerar o mercado de consumo sempre conservador e muito pouco afeito a revoluções. Portanto, não é necessário ser um sofredor de carteirinha para ser um grande criativo. Todo mundo pode e deve se preocupar em desenvolver sua capacidade criativa e utilizá-la em seu dia-a-dia. Excelentes ideias surgem em ambientes saudáveis habitados por pessoas que não precisam consultar um psiquiatra. Também não quer dizer que todas as pessoas que sofrem são potencialmente mais criativas do que as outras. Na maioria dos casos, elas se deixam levar pelo seu desânimo e falta de energia e acabam por criar áridos terrenos mentais que impedem a criatividade de florescer.

Sim, o bem-estar e a tranquilidade não são muito amigos do pensamento disruptivo. Mas não há motivos para alarde. A verdadeira habilidade criativa não reside apenas na genialidade ou na adversidade, mas na capacidade de transformar qualquer experiência, boa ou ruim, em algo significativo. Afinal, a criatividade é, acima de tudo, uma forma de sobrevivência e adaptação — uma forma de dar sentido a essa confusão que chamamos de vida.

Ainda há esperança

Pense bem, mesmo você sendo um Homo sapiens normal (o que quer que isso signifique), também tem seus momentos de queda, de conversas com seu lado negro, de desconforto, irritabilidade, angústia, inconformismo, desespero, vulnerabilidade, inveja, carência, mal humor, desencanto, decepção, questionamentos sobre sua própria capacidade, boletos que nunca acabam, enfim, todas as condições necessárias para almejar um dia alcançar o panteão dos grandes criativos. A matéria-prima você já tem. Basta aprender a usá-la a seu favor. Como eu sempre digo: sou depressivo e sou feliz assim.

Henrique Szkło
eu@henriqueszklo.com